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Para além do algodão agroecológico, famílias agricultoras no Semiárido nordestino buscam incremento na renda com alimentos consorciados


Na Serra da Capivara-PI, famílias agricultoras já fornecem alimentos orgânicos no âmbito do PNAE para o instituto federal e buscam mercado justo para outros produtos. Apesar disso, a consolidação da autonomia financeira das associações de base da agricultura familiar vem de apoios internacionais

Do convívio com a terra que também gera o algodão consorciado com outras culturas alimentares vem a garantia da renda da família da agricultora Silvia Sousa, do assentamento Novo Zabelê, município de São Raimundo Nonato – PI. Entre hortaliças e frutas, grande parte dos orgânicos cultivados em seu roçado e quintal produtivo tem alimentado estudantes das escolas do seu município e do Instituto Federal do Piauí (IFPI). Mãe solteira e chefe de família, teve incremento na renda da casa através do algodão com certificação orgânica participativa, realidade que melhorou com a entrada no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), previsto pela Constituição Federal, e que tem o objetivo de oferecer alimentação de qualidade para as escolas públicas do país.

A legislação desde 2009 determina o repasse de no mínimo 30% dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para a compra de produtos da agricultura familiar. Assim, a inciativa nacional beneficia estudantes que terão acesso a alimentação saudável e as famílias agricultoras, através do incentivo à compra dos alimentos orgânicos. “É uma garantia maior das nossas rendas porque a maioria das agricultoras que participam do PNAE são chefes de famílias e mães solteiras, como eu por exemplo, que sou pai e mãe. Então isso nos dá uma garantia maior de termos uma renda mensal ou quinzenal. Fazemos as entregas semanalmente e tiramos uma nota a cada quinze dias para aqueles alimentos serem pagos”, diz.

Agricultora Silvia (camisa branca listrada) em feirinha orgânica no IFPI em São Raimundo Nonato – PI

Silvia explica que apesar da concorrência de produtores e produtoras locais para firmar contrato no âmbito dos pregões do PNAE, seu vínculo com a Associação dos Produtores Agroecológicos do Semiárido Piauiense (APASPI) tem garantido espaço dentro da iniciativa nacional. “Quando participamos como associação com o CNPJ da APASPI, isso nos garante mercado porque o edital é bem claro para a compra de alimentos com certificação orgânica, quando você participa por associação você fica em primeiro lugar e isso nos facilita a ganhar essa chamada. Também garante um trabalho muito rico, porque sabemos que na agricultura orgânica não trabalhamos com nenhum adubo químico [sintético] e isso nos dá uma alegria muito grande de alimentar o próximo com segurança”, afirma.

Entre os diversos alimentos encaminhados às escolas estão o milho, jerimum, melancia, melão caipira, coentro, alface, rúcula, acelga, cebolinha, alecrim, hortelã, beterraba, cenoura, manga, acerola, umbu, maracujá e outros. Experiência também vivenciada por Valquíria Viana, agricultora multiplicadora, sócia-fundadora e tesoureira da APASPI, que aos poucos tem alcançado autonomia financeira através da venda garantida do algodão com certificação orgânica participativa para o comércio justo e agora, dos alimentos orgânicos para o PNAE.

Agricultora multiplicadora Valquíria e fardos de algodão com certificação orgânica participativa produzidos por famílias agricultoras na Serra da Capivara – PI

“As mulheres trabalhavam nos seus roçados e seu esforço não era reconhecido e nem remunerado. Hoje, através do Projeto Algodão, as mulheres têm o seu trabalho reconhecido. Temos a garantia de venda dos nossos produtos também para o PNAE. Então é gratificante saber que além de vender os produtos fornecidos dentro dos nossos roçados ainda temos a tranquilidade de termos nossos filhos consumindo uma merenda escolar de qualidade e orgânica”, explica.

O caminho de fortalecimento da APASPI – Com atuação em sete territórios do Semiárido nordestino, desde 2018 o Projeto Algodão tem apoiado 115 famílias agricultoras distribuídas em 74 comunidades e assentamentos na Serra da Capivara-PI, aproximando-as ao mercado orgânico e comércio justo, além de realizar formações e assessoria técnica para melhor convivência com o semiárido no plantio do algodão em consórcios agroecológicos com culturas alimentares e forrageiras.  

De acordo com Gean Magalhães, sócio-fundador da APASPI e técnico da Cáritas que presta assessoria às famílias no território da Serra da Capivara – PI, a construção coletiva de conhecimentos sobre o campo permite uma melhor apropriação para resultados eficazes. “Desde o início, caminhamos lado a lado no processo de criação da APASPI com trocas de experiência e construção da caminhada. A nossa forma de fazer a assessoria é a de ser parte do processo através de formações, capacitações, mas também de rodas de conversas e momentos nas comunidades e assentamentos, buscando outras parcerias que ajudem no desenvolvimento sustentável.  Isso dentro do modelo e da metodologia de experimentação e construção de conhecimento através das Unidades de Aprendizagem e Pesquisa Participativa (UAPs), na aplicação das tecnologias poupadoras de mão de obra, aplicação do protocolo de boas práticas do algodão agroecológico e pensando nesse modelo sustentável e equilibrado”, explica.

Gean, assessor técnico da Cáritas, e Valquíria, em campo consorciado de algodão agroecológico na UAP Comunidade Quilombola Lagoa dos Prazeres – São Raimundo Nonato – PI

No Sertão do Araripe, famílias agricultoras projetam comercialização de outros alimentos – Já no Sertão do Araripe-PE, mais de quinhentas famílias agricultoras são apoiadas pelo Projeto Algodão e no último ano produziram 5,49 toneladas de algodão com certificação orgânica participativa, mais de 62t de milho, 14,32t de feijão e 1,74t de gergelim. Com a venda da pluma de algodão com certificação orgânica já garantida em 2022, a expectativa é que se avance na comercialização dos demais alimentos dos consórcios agroecológicos como o milho, feijão, amendoim, girassol e gergelim, assim como das demais áreas (frutas, hortaliças, forragem, sementes de adubação verde, entre outros).

“O Projeto Algodão veio fortalecer as famílias agricultoras, trazendo acesso a mercados, onde as famílias já comercializam seus produtos, não só o algodão, mas estão buscando mercados para comercialização de outros produtos”, afirma a agricultora e tesoureira da Ecoararipe/PE, Adeilma Silva. Já o assessor técnico do Projeto Algodão, Hélio Nunes, explica que “está se buscando, através de estudos da viabilidade econômica, mercados para esses produtos. Então é possível introduzir produtos alimentares de qualidade, orgânicos, para as pessoas consumirem, melhorando sua saúde através de um grupo de agricultores e agricultoras que se organizam num Organismo Participativo de Avaliação de Conformidade Orgânica (OPAC) e oferecem ao mercado produtos certificados”, diz.

Segundo Fábio Santiago, coordenador do Projeto Algodão/Diaconia, é preciso que os alimentos dos consórcios tenham acesso à mesa da população para equilibrar a oferta à sociedade e a distribuição de riquezas. “As organizações de base da agricultura família, sempre excluídas do processo de acesso ao crédito, precisam alcançar o mesmo nível de acesso das empresas. Atualmente, elas já podem fazer o controle da qualidade orgânica das unidades familiares produtivas colocando o selo brasileiro orgânico em seus produtos. Então, é necessário potencializar essa economia solidária e circulante porque o desenvolvimento da sociedade também passa na distribuição de renda da agricultura familiar no campo”, afirma.

Adeilma Silva segura feijão orgânico em campo consorciado de algodão agroecológico

Além disso, assim como a assessoria técnica dos demais territórios apoiados pelo Projeto Algodão, no Sertão do Araripe-PE é seguido o modelo sustentável que se torna possível a partir da experimentação de metodologias participativas nas UAPs que realizam o controle da qualidade orgânica de seus produtos. “O avanço do plantio do consórcio agroecológico é notório, é visível. Não vemos outro modelo de plantio que não seja esse consorciado com outras culturas”, observa Alexandre Holanda, técnico da ONG Caatinga, parceira do projeto.

Conforme explica Flávio Almeida, técnico da ONG Chapada, que também assessora as famílias agricultoras da região do Araripe-PE, “essa diversidade de culturas é certificada pela ECOARARIPE/PE que é um OPAC, do Sistema Participativo de Garantia (SPG), onde grupo visita grupo e outras UAPs através do controle social e tem também do papel da responsabilidade solidária”, diz.

Incentivo financeiro de fora do país – Atualmente, as iniciativas nacionais para financiamento de articulações em prol do fortalecimento da agricultura familiar estão escassas. Nesse sentido, o apoio de fundos internacionais se torna crucial para que o modelo de sustentabilidade e de geração de autonomia das organizações de base da agricultura familiar possa acontecer no semiárido do país com o incentivo ao acesso a mercados para além do algodão, com outros produtos como óleo de gergelim, fracionado de gergelim, tahine, amendoim cru e torrado, girassol, feijão ensacado, milho em saca (grão), frutas de época e plantas adubadeiras.

Ainda no mês de abril/2022, as famílias agricultoras da APASPI e da Ecoararipe tiveram a oportunidade de apresentar o funcionamento dos seus OPACs/SPGs e conduzirem visitas de campos com a presença da coordenação do projeto, da Diaconia e representante da Porticus, um dos apoiadores financeiros do projeto.

De acordo com Diogo Vallim, consultor da Porticus, ficou evidente o potencial do alinhamento técnico às práticas das famílias agricultoras apoiadas pelo projeto. “Nos chamou atenção como o conhecimento técnico precisa ser associado à articulação social para alcançar uma transformação. Um não funciona sem o outro. Ter só conhecimento técnico às vezes restringe um pouco as pessoas. Se esse conhecimento não é compartilhado, ele não gera transformação. E da mesma maneira pode ter articulações fortes, mas se não são baseadas em conhecimentos como cuidar da terra, manejar a praga, produzir mais e melhor, acessar mercados, muitas vezes também a articulação social não funciona. Então, ficou forte essa questão de como é importante associar um com o outro”, afirma.

Além disso, Diogo acrescenta que “para a Porticus, um projeto como esse representa a concretização de um modelo de desenvolvimento que acreditamos, um modelo justo com as pessoas e que cuida do planeta”, diz.

A visita proporcionou o compartilhamento de experiências com o cultivo do algodão consorciado, a eficácia do uso do protocolo e de tecnologias poupadoras de mão de obra, desafios na comercialização justa dos alimentos dos consórcios e outros.  Segundo o presidente da APASPI, Jonilson Pereira, o momento gerou expectativas para a continuidade do movimento de fortalecimento das famílias agricultoras.

“Essas visitas são importantes para ver presencialmente como o agricultor e a agricultora lidam com seus roçados, e como realizam a aplicação do protocolo, com todo cuidado e seguindo as regras que trazem benefícios para as famílias agricultoras. Por isso, a APASPI depende muito dos financiadores e da Diaconia porque ainda temos alguns anos pela frente para chegarmos aonde nós sonhamos. Então ficamos muito agradecidos pela visita e no aguardo de bons frutos no futuro”, diz.

Já no Sertão do Araripe/PE, para a agricultora multiplicadora e presidente da ECOARARIPE/PE, Maria do Socorro, também é esperada a renovação do projeto em prol da continuidade do trabalho que está sendo executado. “Apresentamos os resultados do que foi possível realizar com o apoio financeiro, como o andamento das UAPs e a importância das máquinas poupadoras de mão de obra. Então esperamos ter o projeto renovado por mais cinco anos para que possamos melhorar ainda mais. Acho que cada pessoa ficou com boa expectativa”, afirma.

De acordo com a coordenadora político-pedagógica de Diaconia, Waneska Bonfim, vivenciar os momentos que foram organizados pelas famílias agricultoras de ambos os territórios serviu para fortalecer o entendimento sobre a caminhada e os instrumentos do trabalho institucional no campo. “A visita especificamente à Serra da Capivara-PI e ao Sertão do Araripe-PE foi muito importante para perceber e identificar os resultados do nosso trabalho, a partir das observações sobre a autonomia das famílias agricultoras. Sempre repito que o trabalho de Diaconia é servir para que as famílias com as quais trabalhamos tenham autonomia e possam viver com melhor qualidade”, afirmou.

Projeto Algodão em Consórcios Agroecológicos – É uma iniciativa coordenada por Diaconia, em parceria estratégica com a Universidade Federal de Sergipe (UFS, Campus Sertão – Nossa Senhora da Glória/SE). O Projeto conta com o apoio financeiro da Laudes Foundation, da Inter-American Foundation (IAF) e do FIDA/AKSAAM/UFV/IPPDS/FUNARBE. O Projeto ainda é parceiro do SENAI Têxtil e Confecção da Paraíba, e com o Projeto + Algodão – FAO/MRE-ABC/Governo do Paraguai/IBA. Para a execução do Projeto nos territórios, a Diaconia estabeleceu parcerias com ONGs locais com experiência em Agroecologia que são responsáveis pelo assessoramento técnico para fortalecer os Organismos Participativos de Avaliação da Conformidade Orgânico (OPACs) e a produção agroecológica. No Sertão do Piauí, a Cáritas Diocesana de São Raimundo Nonato desenvolve as atividades na Serra da Capivara. No Sertão do Cariri, na Paraíba, o trabalho está sendo realizado pela Arribaçã, tendo ainda a parceria com o CEOP – Território do Curimataú/Seridó da Paraíba. No Sertão do Araripe, em Pernambuco, as ONGS CAATINGA e CHAPADA assumiram conjuntamente as ações do Projeto. As atividades no Alto Sertão de Alagoas e no Alto Sertão de Sergipe estão a cargo do Instituto Palmas e do Centro Dom José Brandão de Castro (CDJBC), respectivamente. No Sertão do Pajeú (PE) e no Oeste Potiguar (RN), territórios onde a Diaconia já mantém escritórios e atividades, ela mesma se encarrega da implementação das ações locais do Projeto e parceria com CPT – RN.